Reflexões sobre Ainda Estou Aqui (2024)
Novo filme de Walter Salles é o atestado de óbito de uma época que o Brasil tentou esquecer
Ainda Estamos Aqui.
Se em trabalhos anteriores como Terra Estrangeira (1995) ou Central do Brasil (1998), o carioca Walter Salles retratou — mesmo que com abordagens e métodos diferentes — a busca pelo sentimento de pertencer, em Ainda Estou Aqui (2024), sua produção mais recente, o diretor conta uma história cuja principal temática é a memória. O longa é uma adaptação do livro autobiográfico e homônimo de Marcelo Rubens Paiva e segue a trajetória da mãe de Marcelo, Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, sequestrado e assassinado pela ditadura militar em 1971.
Li em algum lugar que Ainda Estou Aqui é “um filme silencioso que grita". Isso foi antes da minha sessão, e, quando os créditos subiram pela tela, relembrei a sentença. Um silêncio quase unânime preenchia a sala de cinema, de forma que apenas era possível entreouvir alguns soluços, mesmo quando estes eram abafados, em vão. Havia um turbilhão de sentimentos dentro dos espectadores naquele momento. É claro que produções sobre esse período quase sempre soam como um soco no estômago, mas o filme em questão provocava um sentimento agridoce. Imaginei que as pessoas estivessem sentindo como se tivessem acabado de presenciar uma obra grandiosa, mas também sentiam uma vergonha que não podiam explicar.
Todo esse silêncio ao fim da sessão dava continuidade a um silenciamento presente ainda na história do filme, e é a partir das ausências que Salles consegue impactar o público em maior grau. O que não é dito, o que não é mostrado, tudo isso reflete a experiência de viver num regime ditatorial, sendo reflexo de uma escolha do diretor em decidir adaptar a história de vida dessa família, que ainda persiste, da maneira mais respeitosa possível. Em momento algum o filme se rende à violência gráfica explícita, muito menos beira ao melodrama. Walter Salles, aqui, apresenta um filme que é a biografia não só dos Rubens Paiva, mas de nosso próprio país.
Eunice (Fernanda Torres) não é passiva às situações que vive, mas toda sua dor é contida por um não-dizer sufocante. Salles sabe que a vida tem de continuar e que ela nunca será simples ou fácil de compreender. Muitos nascidos pós-redemocratização falam sobre a Ditadura, mas a verdade é que nenhum de nós pode mensurar com exatidão a sua crueldade. Muito disso porque a Ditadura é uma experiência diferente para cada um dos viventes, e quando o próprio Estado assume o papel do agressor, o único sentimento comum é o de impotência.
Para mim, dos pontos mais significativos de Ainda Estou Aqui é a decisão de intercalar momentos felizes, com cenas de tensão e tristeza. Óbvio que esses lapsos de alegria se transmutam numa disfarçada e incômoda melancolia para aqueles que conhecem os rumos que a história toma. Ainda assim, o filme nunca desiste de combinar esse amontoado de lembranças e perguntas. Acredito que a memória funciona um pouco assim, pregando peças com o tempo e adquirindo os mais diversos significados, de acordo com sua perspectiva.
Porém, mais que representar com excelência as relações e características daquela época ou transmitir o espírito do que é ser Brasileiro, o grande trunfo para o sucesso internacional de Ainda Estou Aqui talvez se dê pela representação quase universal dos laços familiares. Em poucos minutos nos sentimos parte daquela família que tanto lembra a nossa, enxergamos nossos pais, mães, irmãos e infância representados em tela.
Dançar na sala de estar, se bronzear com coca cola, jogar futebol de mesa com seu pai, usar o casaco antigo da sua mãe ou comer suflê no almoço…tudo fica para trás quando o eminente ponto de virada se torna inevitável. O pôster do filme usa o frame de uma cena que exemplifica bem esse momento: ao contrário de seus familiares, Eunice não sorri para a fotografia, sua expressão está fechada e voltada para a direção contrária à família. Caminhões do exército estão chegando.
O fatídico evento que desencadeará os eventos posteriores, apesar de parecer interminável e torturante para o espectador, leva apenas alguns minutos do longa. Logo fica claro que a vida, agora interrompida, de todas aquelas pessoas, nunca mais será a mesma.
“É uma sensação esquisita, né? Sentir alívio com um atestado de óbito.”
Rapidamente, nos encontramos diante de uma realidade crua que se reflete na recusa de um clímax, quero dizer, para ser honesto, existe sim uma cena de explosão dos personagens, mas esta se encontra bem longe das sequências apoteóticas comumente encontradas em produções desse tipo, o que não quer dizer, porém, que o impacto de Ainda Estou Aqui diminui. Pelo contrário, a dor do não-saber, o paralelo que o longa produz entre a perda de memória provocada pelo Alzheimer e a própria memória nacional, a rapidez com que as coisas da vida acontecem e a confusão informacional proposital que o filme reproduz como reflexo da falta de informação da realidade, todos são elementos que compõem um filme que pode te tocar nas mais diferentes maneiras.
Na última cena do filme, a câmera lentamente passeia por todos os cômodos da residência dos Rubens Paiva, agora vazia. Sem pressa, nos afastamos da casa que era quase um indivíduo/personagem de tão importante. Este antigo símbolo de toda presença e vida daquela família, se tornara apenas mais um lembrete doloroso de um período que, aos poucos, se torna mais embaçado na lembrança. É como se a gente se despedisse da nossa família, da nossa própria casa, daquele lar, tão antes preenchido, da sala em que meu filho nasceu e deu os primeiros passos. A memória é tortuosa e o tempo, traiçoeiro. Os filhos já não tem tanta certeza de quando ocorreu determinado acontecimento da fotografia sobre a mesa.
Preservar e resgatar a memória é imprescindível para um país que renega seu passado, talvez, por isso, tamanho foi o espanto no cinema.
“Seu orgulho era maior do que seu esquecimento.
Jamais sentiria pena de si mesma. Nem queria que sentíssemos pena dela. Jamais pediu ajuda. Recentemente, uma nova fala cheia de significados entrou no seu repertório, especialmente quando um turbilhão de emoções a ataca, como rever uma filha que mora na Europa ou segurar no colo o meu filho, o que mostra uma felicidade e um alerta, caso alguém não tenha reparado: Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui.
Sim, você está aqui, ainda está aqui.
Minha mãe, aos oitenta e cinco anos, não entrou no Estágio IV, o pior de todos. Sua vida tem muitos atos. Teremos mais um. Enquanto a morte do meu pai não tem fim.”
- do livro Ainda Estou Aqui.
Contatos mais Imediatos #4: Julia @jotauelleia
Contatos mais que Imediatos é o quadro de Contatos onde, toda semana, conhecemos uma pessoa - anônima ou não -, que tenha algum projeto legal, ou que apenas seja interessante. E qual a melhor maneira de conhecer alguém se não pelos seus gostos? Conheceremos o que a pessoa gosta e não gosta, sua bio autoral, seus livros, filmes e discos de cabeceira!
JULIA POR JULIA: Meu nome é Julia. Frequentemente sinto que isso é tudo que sabem sobre mim, e é tudo que eu sei sobre mim mesma. Sou uma viciada incurável em ter uma opinião sobre tudo. Me assusto quando alguém gosta gratuitamente de mim. Sou ligeiramente insuportável, com algumas pitadas inesperadas de sensatez. Escrevo porque não caibo em mim. Escrevo para respirar melhor. Escrevo em todas as redes possíveis pra sentir que existo. Escrevo o que eu penso, o que eu sinto, o que eu sou. Jotauelleia, Julia, com jota. Só isso. Tudo isso.
6 Coisas que Eu Gosto:
Fazer perguntas;
O primeiro gole de café do dia;
Céu azul com vento gelado;
Risada que faz rir;
Madrugada;
O perfume das coisas.
6 Coisas que NÃO Gosto:
Promessas eternas;
Roupa estampada;
Céu nublado;
Elevador;
Certezas absolutas;
Ultraprocessados.
Os Favoritos de Julia…
Livro de cabeceira
A Gaivota - de Anton Tchekhov.
Obsessão Recente
Qualquer informação, notícia ou referência do lançamento do filme “Ainda Estou Aqui” nos festivais internacionais.
Um Filme Que Me Representa
Eu Sei Que Vou Te Amar (1986) dir. Arnaldo Jabor.
Um Disco Que Marcou Minha Vida
Mais (1990) - Marisa Monte
Siga Julia no Twitter e no Instagram;
Recados Imediatos
Gostou da Contatos de hoje? O que você quer ver ou quem você quer ver nas próximas edições?
Não esqueça de demonstrar seu apoio comentando aqui, curtindo as publicações e seguindo a Contatos no Twitter, no instagram (nosso acervo de artes e matérias), na Bluesky e no Letterboxd. Também estamos crescendo na própria plataforma/app da Substack.
Recomende e compartilhe a Contatos para alguém querido!
Captura exatamente a sensação de assistir o filme. Uma impressão sensível e precisa do longa. O trecho do livro ao final foi um toque sublime!
lindo texto, muito tocante.