Discutindo Anora depois que a poeira abaixou pra não virar thread no twitter
Em defesa do último vencedor do Oscar.
Nesta edição da Contatos ★ Imediatos:
- “Discutindo Anora depois que a poeira abaixou pra não virar thread no twitter”, por
@stollendanceNa edição anterior: “Nosferatu-Mania (Parte 2): É Preciso Acreditar que Ele é Real”
Discutindo Anora depois que a poeira abaixou pra não virar thread no twitter.
Antes de qualquer coisa quero dizer que, como de costume, procurei escrever sobre a película de maneira que o texto possa ser lido tanto por quem viu o filme, tanto por quem não viu o filme, mas se você é daquelas pessoas que prefere não saber absolutamente nada sobre a história de um longa-metragem, sugiro que assista a produção primeiro.
Dentre as discussões que você pode considerar spoiler, há um trecho em específico que não posso deixar de fora deste texto. O momento em questão refere-se à minha experiência pessoal com os minutos finais de Anora, e é justamente com o final do filme que, ironicamente, dou início a este texto.
Claro que não direi o que acontece na última cena do filme de Sean Baker, apenas informo a você que, quando os últimos frames passavam, pensei de maneira súbita: “consigo compreender o porquê da vitória deste filme no Oscar”.

Meu impacto ao fim da sessão tem pouco ou quase nada a ver com a última temporada de premiações, porém o último quadro de Anora me trouxe, naquele momento, um sentimento parecido com aquele que tive quando vi a personagem prostituta de Marília Pêra com o garoto Pixote no colo, em Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980) - essa é a hora que alguém faz uma captura de tela do texto, indignado com a comparação -, embora o filme brasileiro que mais tenha me lembrado Anora seja o ótimo Falsa Loura, de 2007.
Essa semelhança me fez revisitar meus escritos antigos sobre o filme de Reichenbach, eis o que encontrei:
“A esperança destruiu a América Latina.
Falsa Loura mostra que a classe trabalhadora está fadada aos momentâneos e ilusórios escapes da realidade que seus efêmeros prazeres proporcionam. Silmara é a Falsa Loura não porque pinta o cabelo, mas porque, não importa quanto tente, nunca será aceita pelos dominantes, nunca escapará da realidade em que se encontra.
Os personagens de Falsa Loura brincam e se divertem entre si, mas a maioria não possui nem a audácia de imaginar alguma perspectiva de vida. Silmara, assim como suas colegas, não demonstra indignação, tristeza ou raiva sobre a própria situação, a personagem se ocupa com festas de bairro e paixões por celebridades, como qualquer jovem adulto, e que nesse caso ganha uma conotação diferente.
A expressão que a personagem transmite no último frame do filme é de alguém que experimentou tudo que sonhava e percebeu que nada daquilo era como imaginava e tampouco era real. É por este motivo que Silmara nunca revela suas verdadeiras experiências para suas amigas. O capitalismo se apoia na hierarquia patriarcal e potencializa a objetificação da mulher, tornando-a uma ferramenta que, em breve, será descartada pelos próprios alicerces do sistema que a usufruiu”
- 29 de fevereiro de 2024.

Em Anora, Mikey Madison apresenta uma protagonista que podemos encontrar em várias cidades do mundo – não, não estou falando das trabalhadoras do sexo-, Anora é uma jovem mulher que trabalha para sobreviver e, assim como as mulheres marginalizadas da vida real, Anora é alguém que muitas vezes pode não verbalizar seus desejos e vontades de forma clara, mas basta um único olhar seu para transmitir ao espectador todo seu anseio.
O que sabemos sobre Anora?
Bom, primeiro que durante quase toda a duração do filme os personagens, incluindo a própria Anora, referem-se a ela utilizando o apelido “Ani”, “Anora” é “étnico demais”, ela pensa.
Além disso, Anora (ou Ani) quer ter a lua-de-mel na Disney, seu sonho de infância é passar a noite naqueles enormes quartos de princesa. Em determinado momento da trama ela até cita Cinderella, aquele conto de fadas sobre uma jovem que vivia em constante degradação, degradação esta que só cessa no momento em que um lindo príncipe chega e dá fim ao seu sofrimento.
Ao falar de Anora, alguns caminhos mais lógicos surgem, temas como a precarização do trabalho, o sonho americano, a desumanização da mulher…mas Anora não escolhe caminhos lógicos ou fáceis.
A introdução do longa é uma sequência que coloca dançarinas eróticas e strippers como se estivessem numa linha de produção. A rotina de Ani, de fato, é de alguém que trabalha diariamente para se sustentar, a diferença é que, ao contrário de uma parcela da população, Ani não possui nenhum direito trabalhista, mesmo que leve seu trabalho muito à sério, mesmo que para ela todos aqueles clientes não passem de uma formalidade, de um acordo prático.
Seu ciclo permanece o mesmo: casa, boate, casa, boate, casa…
Consigo visualizar 3 momentos muito específicos e diferentes em Anora, as particularidades desses 3 atos são notáveis, mas nenhum deles não tem como propósito desenvolver sua protagonista (Mikey Madison é brilhante e consegue transitar por todos esses intervalos com facilidade e destreza).
A primeira parte da produção soa como aqueles filmes da sessão da tarde (Uma Linda Mulher), onde tudo parece um conto de fadas, e se eu não soubesse que se trata de um filme de Baker - que sempre possui sua perspectiva a partir de uma minoria marginalizada da sociedade-, talvez eu até acreditasse que as coisas pudessem acabar como parecem ser nesses primeiros minutos.
É nesse primeiro ato que os sonhos da nossa protagonista rapidamente tomam forma, e quase não percebemos como a Anora que vemos é quase que inteiramente moldada para agradar ao seu príncipe encantado, o milionário Ivan.
As repetidas sequências de sexo estão lá por um motivo específico, elas não deixam o espectador esquecer do papel principal de Anora para todos aqueles ao seu redor: servir como objeto, como um produto a ser consumido. E mesmo quando a personagem realiza uma simbólica transição e parece se distanciar de seu passado, as sequências de sexo continuam, como um lembrete: parece que Anora agora é vista como indivíduo…só parece.

Aí chega a segunda metade, quando o conto de fadas se desfaz, conhecemos os outros lados de Anora e o filme ganha ares de comédia pastelão, sequências absurdas que entretém, mesmo com a verossimilhança de Baker. É esse momento intermediário que talvez divida a maior parte dos espectadores, mas nada dele me incomodou, pelo contrário, chega um ponto em que você se dá conta que o que vê em tela é nada mais nada menos do que uma extensão bem humorada da crítica do filme: 4 assalariados que não tem onde caírem mortos procurando um filhinho de papai pela cidade. Tem algo mais explícito que isso?
Já a terceira e última parte…bom, você vai ter que assistir pra saber, mas já adianto que as interações de Anora com um dos personagens fecha o ciclo da história de maneira fenomenal.
E reitero novamente: esses são apenas alguns de meus pensamentos sobre o filme. Acho Anora empático, real, sensível e um filme que é dramático de maneira não óbvia (a performance de Yura Borisov, por exemplo, se desprende de todo possível ego e engrandece a atuação de Madison).
A vitória de Anora no Oscar representa também uma vitória do cinema independente, das produções pequenas e daquele movimento e frescor típicos do cinema de Baker. E é claro que tudo isso não anula as críticas negativas que muitos outros escritores sobre cinema fizeram (e a opinião pública também fez, muitas das vezes não da maneira mais correta).
Conheço muita gente - com gostos e opiniões completamente distantes entre si - que achou Anora um filmaço, assim como também conheço muita gente que detestou a produção.
Pensando bem…não é esta a graça do cinema e da arte?
Leia também:
- “Em Defesa de Carrie Bradshaw (e outras histórias)”;
- “Reflexões sobre Ainda Estou Aqui (2024)”.
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gostei muito da maneira como você conduziu o texto, gui! já vim com minhas pedras na mão porque acho, no mínimo, suspeito a academia premiar dois anos seguidos filmes onde a protagonista está de alguma forma em uma posição de degradação sexual. só que conforme fui lendo, fui abaixando-as hehe
mas, sendo honesta, esse foi o primeiro oscar que assisti (por motivos óbvios) então não tenho a mesma perspectiva da 'dimensão' que uma estatueta pode trazer para um filme, ator, diretor ou para o cinema independente como você disse e o sean também disse em seus discursos. acredito que a revolta pós-oscar não é sobre o quão bom o filme tenha sido, é a mensagem decepcionante que A Grande Bancada do Mundo quer dizer para as mulheres, sobre como as veem e para que servem. você pode interpretar 500 bons papéis, trazer para luz do dia mulheres fortes que sobreviveram apesar dos esforços másculos para que não, mas premiaremos aquelas que, de alguma forma, cederam aos nossos desejos. ah, sei lá, a pornografia é uma praga e ela aceita em grandes salões é uma derrota. a prostituição não é uma liberdade do corpo feminino, nem "a profissão mais velha do mundo" é só a prova de que os homens sempre estiveram no controle de corpos femininos. seja por força, seja pelo capitalismo. bons filmes sobre o tema eu considero gangubai (2022) e as polacas (2023), mas amo vivre sa vie e o clássico pretty woman que você citou! o da prof helena nunca assisti. enfim, sempre muito bom te acompanhar por aqui ♡
Excelente texto e obrigado por essa exposição. Eu assisti o filme logo depois da premiação, a fim de conferir a obra, já que alcançou o tão desejado prêmio de melhor filme do Oscar.
E, assim como você mencionou no texto, essa “segunda metade”, com a introdução de uma “comédia pastelão”, me incomodou demais. Nessa hora eu me senti péssimo por estar achando o filme péssimo, justamente pela mudança de gênero, inserindo a comédia no enredo. Eu realmente devo ter um gosto muito fraco para arte, ser uma pessoa extremamente rasa, porque não consegui gostar do filme justamente por causa desse meio que achei muito ruim, desconexo, sem sentido, muito à parte. A partir dali, fiquei desconectado da história e quando cheguei ao fim, já estava desestimulado, desesperançoso. E, o final que foi bem interessante e que deveria me impactar, acabou não me tocando, justamente por causa dessa parte da comédia. Enfim, deve ser como eu falei, o problema é meu gosto raso, simples, talvez. 😅